quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Especial 30 anos da Revolta dos Motoqueiros - Publicado no jornal O Nacional, de Passo Fundo (RS)




Quando a justiça saiu às ruas

5 de fevereiro de 1979. A história de Passo Fundo é tragicamente marcada pelo assassinato do motociclista Clodoaldo Teixeira por policiais da Brigada Militar. Instigadas pelo espírito de justiça e cansadas da repressão da ditadura, no dia seguinte, mais de 10 mil pessoas vão às ruas protestar. A manifestação transformou-se em uma das últimas fortes manifestações populares no Rio Grande do Sul, conhecida como a Revolta dos Motoqueiros.
Envolvido pela história, o jornalista Leandro Dóro resolveu converter o episódio em livro, fazendo com que ficção, desenho e realidade se encontrem e não permitam que a lembrança do acontecimento se desfaça.

Segundo ON
"Mais de cem motociclistas seguem do cemitério rumo à praça em frente à Catedral. Dezenas de pedestres participam do cortejo lento, em pleno meio-dia. Alguns empunham cartazes pedindo a prisão dos executores. Ao pararem na praça, notam centenas de policiais militares e soldados do Exército na rua lateral. Surgem viaturas, um grupamento a cavalo e homens a pé e com cassetetes da Tropa de Choque, da Brigada, que interrompem as ruas que dão acesso à praça. Um jovem ergue os braços. Pede calma. Um tenente, por um megafone, ordena aos `subversivos` que se dispersem. Pedestres e motoqueiros gritam contra a Brigada, enquanto pegam pedras do chão ou arrancam galhos de árvores da praça. Alguns motociclistas tentam fugir pelas ruas laterais, mas as viaturas interrompem as saídas. Os comerciantes fecham as portas de suas lojas. Os policiais a pé e os cavalarianos se aproximam. Uma voz, em meio à multidão, grita: Deixem-nos em paz!"
Era esse o grito preso na garganta dos 10 mil passo-fundenses que inundaram o centro de Passo Fundo em 6 de fevereiro de 1979 e que, muito mais do que revolta, tinham nas veias uma infinita sede de justiça, que transforma o povo quando há união e faz de um triste lamento um verdadeiro grito de guerra, guerra contra a conformidade, contra o acobertamento, contra a impunidade. Em tempos de ditadura, surpreende uma cidade inteira ter se levantado contra o punho de ferro dos militares e que tenha escrito em letras garrafais: "Brigada não protege, mata!", "Marginais a serviço da sociedade", "Assassinos!". Pois aconteceu. E hoje, 30 anos depois, com a aura de rebeldia silenciada por uma liberdade confortável, com uma democracia cuja censura e repressão são acobertadas e em que a alienação é quase bem-vinda, alguns poucos ainda usam suas mãos para protestar, carregando consigo uma implacável arma: o passado.
Foi isso que o jornalista e cartunista Leandro Malósi Dóro utilizou para escrever Revolta dos Motoqueiros, um manifesto em honra ao acontecimento que marcou Passo Fundo e mudou os caminhos de sua história. Transformado em ficção, com nomes alterados e sob o ponto de vista pessoal, o acontecimento foi derramado em 80 páginas e ilustrado por momentos-chave, desenhados por Leandro com criatividade e visão.
Em entrevista ao Segundo, o jornalista aproveita a proximidade da marca de 30 anos do episódio para contar um pouco mais sobre seu livro e a sua opinião a respeito da tragédia que tocou a população e se tornou o último grande grito de revolta em Passo Fundo, um grito que ecoa até hoje na voz daqueles que acreditam em justiça.

Segundo - Como surgiu o interesse no episódio da Revolta dos Motoqueiros?Leandro Dóro - Em 1995 desenhei a proposta de uma revista em quadrinhos sobre a história de Passo Fundo. Nunca foi publicada por falta de patrocínio. Mas li livros sobre a história local. Entre eles, República dos Coqueiros, de Argeu Santarém, por indicação de Ivaldino Tasca. Aos 19 anos, aquele episódio me emocionou. No Museu de Artes conheci o então estudante de História André Piasson, que também se apaixonou pela revolta. Vasculhávamos jornais. Escrevi em 2000 uma novela publicada apenas na web (http://livrotrafico.blogspot.com/) que serviu como primeiro exercício para me tornar escritor. Quando concluí a oficina com Assis Brasil, decidi adaptar a revolta para um formato jovem, quase infanto-juvenil, utilizando uma técnica narrativa que se aproxima da de aventura.

Segundo - E a experiência de escrever um livro sobre um assunto como esse?LD - Meu desafio foi atingir quem não lê livros. Por isso elegi um número pequeno de palavras a serem utilizadas na trama, para que o leitor lesse a novela em uma hora. Assim, houve muitas repetições. Comecei a escrever em 2004 e só terminei em 2006 por insistência de Roberta Scheibe e Rodrigo de Andrade, que queriam fazer o lançamento no festival Armênios On Fire, promovido pelo site http://www.osarmenios.com.br/.

Segundo - Como foi o processo de criação do livro, já que se trata de um romance baseado em fatos reais?LD - Tive que modificar a realidade para que o episódio adquirisse o formato de ficção. Quase uma aventura. Minha meta era gerar interesse pelo episódio para então deixar os historiadores contarem-na com todas suas nuances. Por isso, criei um casal principal e um secundário, conforme o indicado pelo professor de roteiro Sid Fields. Também executei pontos de virada e outros recursos presentes no roteiro cinematográfico. Também fiz as ilustrações que abrem cada capítulo. Pedi para o animador Glauco Caon executar um flip, que está na borda das páginas do livro. Ou seja, trabalhei cinco técnicas naquele pequeno livro: a jornalística, a literária, o roteiro cinematográfico, a animação e a história. Serviram como base para a pesquisa, os jornais da época e, principalmente, os textos de André Piasson, que escreveu um posfácio, ao estilo infanto-juvenil, contando o episódio sob o viés real.

Segundo - Esta pode ser considerada uma das últimas fortes manifestações da população no estado. Qual a importância disso?LD - Em Passo Fundo, foi a última grande revolta popular do século 20. No Rio Grande do Sul, provavelmente, uma das últimas. Suas características assemelham-se a outras revoltas populares, cuja origem é a morte de uma pessoa que pertence a um grupo ou comunidade. Porém o período e a forma como isso aconteceu é especial. Conforme uma interpretação weberiana, a revolta foi uma reação de setores da classe média contra um erro de uma Brigada Militar que deveria defendê-la. Porém, essa mesma revolta aconteceu logo após o ressurgimento do Movimento dos Atingidos por Barragem, nos anos 1970, da luta entre colonos e índios, em Nonoai, e do início das greves no ABC Paulista, entre outros diversos episódios que sinalizavam a necessidade de se encerrar o regime militar no país.

"É necessário união para se obter justiça"

Segundo - Preocupa o fato de fatos como esses não se repetirem mais?LD - Sim e não. Sim, compomos uma nação passiva e alienada. Aceitamos multinacionais como se fossem superiores a nós. Somos colonizados de bom grado. Cremos que o problema é só a corrupção na política e pensamos que a falta de empregos tem origem apenas na crise mundial. Ninguém pensa: ao invés de eu comer um cereal de uma multinacional, eu poderia optar por um produto feito aqui. Isso me frustra. Porém, também é bom que não ocorram belicosidades, pois a sociedade precisa atingir um processo harmônico de desenvolvimento. Evoluir através da ordem. Se bem que eu gostaria muito que nos livros de história se estudasse com mais fervor a Comuna da Paris, quando, em 1871, a população francesa derrubou o império de Napoleão III e passou a mandar no país. O povo foi derrotado apenas com a aliança de reis do restante da Europa, que temiam que o mesmo acontecesse em suas nações. Mas ficou registrado o poder do povo. Mas sempre existem outras alternativas. Entre elas, as democracias socialistas do norte da Europa, em que o Estado, via altos impostos, supre as necessidades da população em sua totalidade. A população brasileira precisa perceber que vive neste universo de pão e circo midiático. Notar que o Brasil é um Estado neopatrimonialista, na perspectiva weberiana, em que as classes dominantes e a classe média são dependentes do Estado e que os demais, que não conseguem esse vínculo, são excluídos. Apesar de parecer contraditório, o brasileiro também precisa perceber que existem classes sociais e elas são mais importantes do que etnia, por exemplo. A principal luta é para reduzir a desigualdade social.

Segundo - Como a questão da ditadura militar influenciou o acontecimento? Acha que hoje a situação desenvolver-se-ia de maneira diferente?LD - A ditadura estava em seus estertores. Como disse anteriormente, havia muitas revoltas acontecendo no país. Desde 1972 o país vivia uma falsa prosperidade econômica. O governo não conseguia mais esconder as dívidas que acumulou para garantir uma aparentemente feliz década de 1970. A década perdida estava para surgir, os anos 1980. Aliado à economia rastejante, havia a repressão, a linha dura - um pensamento hegemônico que pregava existir duas castas distintas: nós (militares, empresários, políticos, etc) e o povo. O povo merecia repressão. O povo deveria ser tratado como ovelha. Povo tornou-se um termo que designava manada. E isso se refletia na forma de repressão. Sob esse aspecto, a reação ao pedido de justiça da população foi tão errôneo. O povo, segundo os militares, precisava ser apascentado, mas a população não aceitou isso. O aposentado coronel Mendes tem essas características que foram combatidas em 1979. E na Era Mendes nunca se viu tanta belicosidade no RS, tanta truculência. Porém no cerne da Brigada Militar existe uma outra polícia. É aquela que se originou do revolucionário pelotão Pedro e Paulo, que pregava que o brigadiano deveria conviver com a população. Se a população se confronta com métodos repressivos, a revolta poderia se repetir a qualquer momento. Se fosse ao estilo Pedro e Paulo, não.

Segundo - Prestes a completar 30 anos, de que maneira a Revolta dos Motoqueiros pode influenciar no pensamento atual e cotidiano dos passo-fundenses?LD - A revolta nos ensina que é importante reagir à repressão, que é necessário haver união para obter justiça. Que nosso povo não é passivo, que pode crer no jovem e tem forças para lutar.

O autor por ele mesmo
"Tornei-me cartunista e editor do Caderno Infantil de O Nacional em 1993. Atuei nessas tarefas até 1996, quando trabalhei como funcionário fundador do Museu de Artes Visuais Ruth Schneider. Naquele mesmo ano, comecei a trabalhar como repórter, até 2001. Tornei-me, nesse interin, colunista da extinta página http://www.passofundo.com/, e mudei-me em 2001 para Porto Alegre. Atuei como jornalista no 1º Fórum Social Mundial e tornei-me assessor de imprensa e artista gráfico da Associação dos Servidores da Ufrgs. Comecei a ser convidado a ministrar oficinas de charges, tiras e cartuns em universidades. Participei da Grafistas Associados do Rio Grande do Sul e fiz o curso de Criação Literária com Luis Antônio de Assis Brasil. Criei a revista infantil Gauchinho, distribuída pela rede Comercial Zaffari, e fui selecionado a trabalhar na assessoria de imprensa de um sindicato do Judiciário. Participei de concursos e de exposições na França, Alemanha, Portugal, Bósnia Herzegovina, Casa de Cultura Mario Quintanta, entre outros. Organizei a Edição de Risco, livro que reuniu 34 cartunistas do estado, em 2005. Em 2006, lancei Revolta dos Motoqueiros e, em 2007, a revista em quadrinhos Tempero Verde. Participei de coletâneas literárias e de quadrinhos como contista em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Passo Fundo e Portugal. Em paralelo mantenho diversos blogs, entre eles http://leandrodoro.zip.net/, http://leandromalosidoro.blogspot.com/, http://contosemquadrinhos.blogspot.com/ e o mais recente o álbum http://www.flickr.com/photos/leandrodoro/."

1979, o início do fim 31.1.2009

Segundo ON
Mil novecentos e setenta e nove. João Baptista Figueiredo substitui o general Ernesto Geisel no posto de presidente do Brasil, o sul do Mato Grosso se emancipa, François Truffaut filma Amor em fuga, Margaret Tatcher é primeira-ministra da Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a República Popular da China estabelecem relações diplomáticas, The Clash lança London Calling. Coppola surge com o clássico Apocalypse Now, o xá do Irã foge com a família para o Egito, Lou Reed lança The Bells, Raul Seixas termina o ano com dois discos e o mundo se prepara então para o fim de uma conturbada década. Antes de quase tudo isso acontecer, e 1979 ser apenas um promissor amontoado de dias, uma espécie de contagem regressiva para uma nova era, a década de 1980, Tarso de Castro detonava as teclas de sua máquina de escrever tarde da noite de 5 de fevereiro, quando Passo Fundo parecia entrar em erupção e uma aura de revolução se erguia sobre a cidade.
A ditadura começava a ruir. O sentimento de inconformidade há muito angustiava a população. Um tiro pelas costas foi a oportunidade perfeita para que essa revolta escapasse do peito e tomasse conta das ruas. Foi assim que começou o movimento que, ao todo, envolveu mais de 10 mil pessoas. Começando com o assassinato de Clodoaldo Teixeira, a manifestação conhecida como Revolta dos Motoqueiros reuniu, ainda na noite do crime, pouco mais de 200 pessoas. No outro dia, 6 de fevereiro, a comoção havia se espalhado por toda a cidade, e milhares de pessoas saíam às ruas para protestar. Duas novas vítimas resultaram desse confronto, o jovem Adão Faustino, de 19 anos, e Joceli Joaquim Macedo, de 17.
No dia 7, a Brigada Militar precisou receber apoio da tropa de choque de Porto Alegre, tal era a revolta da população que, em um exemplo de união e busca pela justiça, fez tremer as bases do poder no município. Sempre visionário, Tarso de Castro imortalizou na introdução da matéria de capa de O Nacional do dia 6 o sentimento de cansaço do povo e o desejo de dar um basta à opressão militar, mostrando que, nesse caso, as palavras têm a potência de uma arma.
Muitos dizem que o que motivou tanta gente a se manifestar contra a provável impunidade dos assassinos do motoqueiro foi o impacto promovido pelo jornal e por suas matérias provocativas que faziam jus ao passado do jornalista. Ao estampar na capa a camiseta que Clodoaldo usava quando foi morto, Tarso ousou desafiar não apenas a censura dos militares, mas também a paz domiciliar dos leitores que ao ler o jornal sentiram em sua própria roupa o furo da bala que o matou.
Tiro nas costas
Terça-feira, 6 de fevereiro de 1979Por Tarso de Castro
Um fato grave que bem dá conta da violência, da irresponsabilidade e da falta de equilíbrio emocional que domina certas pessoas, encarregadas de manter a ordem, "proteger" a população e que por isso mesmo, tem sempre uma arma carregada na cintura, não para matar, mas para dar ao povo esta proteção, foi o que aconteceu com o menino Clodoaldo Teixeira, residente na rua Antônio Araújo, 170, esquina da Lava Pés. Ele foi morto com um tiro de revólver, acionado por um soldado PM, que juntamente com outros policiais militares, estava numa viatura da Brigada Militar, e que perseguia a vítima. Segundo uma das versões correntes da cidade, prestada por um dos advogados da família da vítima, o menor, depois de um acidente de pequena monta com um PM, sempre seguindo no percurso da firma Honda até sua casa, na rua Lava Pés com Antonio Araújo, foi perseguido por uma patrulha da brigada militar, quando vindo da Av. Brasil, Clodoaldo, tripulando uma moto Honda, entrou na rua Lava Pés, já próximo de sua casa, foi acertado por um disparo fatal, a uns 30 metros de sua casa, caindo do veículo mortalmente ferido. Enquanto os PMs afastavam-se rapidamente do local, o pai da vítima, Sr. Nelson Teixeira, socorria a vítima que já chegou sem vida no Hospital da Cidade.
RevoltaDesde de que se confirmou a notícia do menino Clodoaldo Teixeira, a cidade ficou em grande agitação. Os motoqueiros da cidade, os quais conheciam muito bem a vítima, rumaram todos para o Instituto Médico legal e depois para a Delegacia de Polícia, onde já se encontravam em número de cem aproximadamente, com suas motos e seus gritos de protesto e revolta, afastaram-se da polícia quando souberam que o oficial do dia da BM, solicitado pela polícia civil a apresentar os PMs envolvidos na ocorrência, disse que estava "pensando" no assunto. Por volta das 21h o trânsito, no centro da cidade, estava completamente tumultuado, com um número ainda maior de motoqueiros, fazendo uma passeata de protesto, portando, inclusive, nas motos fitas pretas.

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